Minha avó tinha uma inimiga ferrenha chamada Marina. Elas se mudaram para casas próximas na pequena cidade onde tinham ido viver. Não sei quem começou a guerra, pois foi muito antes de eu nascer, e não sei se quando nasci, uns quarenta anos depois, elas mesmas se lembravam de quem havia começado. Mas o duro combate continuava, com amargas batalhas.
Era uma contenda travada sem um pingo de educação. Era uma guerra entre senhoras, o que representava guerra total. Nada na cidade escapou das conseqüências. A igreja de quatrocentos anos quase desabou quando a vovó e a senhora Marina travaram a batalha pela presidência de uma Sociedade local. Vovó ganhou este combate, mas foi uma vitória sem valor, pois a senhora Marina derrotada, demitiu-se da Sociedade num acesso de pura raiva. E qual é a graça de você dirigir alguma coisa se não puder humilhar sua inimiga mortal?
A senhora Marina venceu a batalha da Biblioteca Pública, conseguindo que sua sobrinha Fernanda fosse indicada bibliotecária no lugar de minha tia Amanda. No dia em que Fernanda tomou posse, vovó parou de apanhar livros na biblioteca, dizendo que estavam "cheios de germes", e começou a comprar os livros que queria ler.
A batalha da Escola Secundária terminou empatada. O diretor conseguiu um emprego melhor e saiu antes que a senhora Marina o tirasse de lá ou vovó conseguisse mantê-lo lá para sempre.
Além dessas batalhas mais sérias, aconteciam constantes ataques e recuos na linha de tiro. Quando éramos crianças e visitavámos vovó, parte da diversão consistia em fazer caretas para os terríveis netos da senhora Marina que revidavam com igual truculência.
Corríamos atrás das galinhas e púnhamos bombinhas nos trilhos do bonde bem em frente à casa da senhora Marina com a doce esperança de que, ao passar, o bonde provocasse uma explosão que a fizesse morrer de susto.
Num dia histórico, pusemos uma cobra na calha de chuva da senhora Marina. Minha avó ainda ensaiou um protesto, mas sentimos sua solidariedade, bem diferente dos veementes "nãos" de mamãe, e prosseguimos na nossa carreira de crianças endiabradas.
Não pense, nem por um minuto que só havia um lado nessa guerra. Lembrem-se de que a senhora Marina também tinha netos bem mais valentões e espertos do que os netos de vovó. Os pestinhas puseram gambás no porão de sua casa e esta foi a agressão mais suave. O fato é que qualquer incidente na casa de vovó foi atribuído aos parentes da senhora Marina.
Não sei como vovó poderia ter suportado todos esses problemas se não fosse pelo caderno feminino do jornal diário. A página era uma instituição maravilhosa. Além das usuais dicas de cozinha e conselhos sobre limpeza, havia uma seção de troca de cartas para que as leitoras pudessem desabafar seus problemas. Para que o anonimato fosse mantido, as cartas vinham assinadas com um pseudônimo. O de vovó era Serena (que ironia!!!). Outras pessoas que tivessem o mesmo problema respondiam, dando a solução encontrada e também usando seus pseudônimos. Muitas vezes, exposto o problema, as leitoras ficavam trocando cartas por anos através do jornal, falando sobre filhos, doces em conserva ou a mobília nova da sala de jantar.
Foi isso que aconteceu com vovó. Ela e uma mulher chamada Andorinha se corresponderam por vinte e cinco anos, e vovó dizia a Andorinha coisas que jamais confessara a ninguém, como a vez em que contou que pensava estar grávida (e não estava) ou quando meu tio Célio pegou piolho na escola e vovó ficou profundamente humilhada. Andorinha era sua amiga do coração.
Quando eu tinha dezessete anos, a senhora Marina morreu. Numa cidade pequena, mesmo que você deteste a vizinha, faz parte das regras de educação se oferecer para ajudar a família enlutada no que for necessário.
Vovó atravessou o gramado, deu os pêsames às filhas e começou a ajudá-las a limpar a já imaculada sala de visitas para o funeral. De repente, viu aberto sobre uma mesa, num lugar de destaque, um enorme álbum de recortes. Para seu mais absoluto estarrecimento ali estavam coladas, em colunas paralelas, as cartas dela para Andorinha e as de Andorinha para ela. A maior inimiga de vovó fora, na verdade, sua melhor amiga.
Foi a única vez que me lembro de ter visto minha avó chorar. Eu não sabia naquela época por que ela estava chorando, mas agora sei. Chorava por todos os anos perdidos que não poderiam ser recuperados. Naquele momento fiquei tão impressionado com as lágrimas de minha avó, que não me dei conta da descoberta fundamental que começava a fazer. Uma descoberta que se transformou em convicção e que tem me ajudado imensamente a viver.
As pessoas podem parecer insuportáveis. Podem parecer egoístas, mesquinhas e hipócritas. Mas, se não procurarmos olhá-las sob outra ótica, nunca seremos capazes de descobrir que são também generosas, amorosas e bondosas. E, se não lhes dermos a oportunidade de revelarem seus segredos e aspectos positivos, procurando sempre falar com elas e não delas ficaremos sempre privados do bem que elas poderão nos proporcionar.